Wednesday, September 15, 2004

 

A Cirurgia

Hoje fui submetida a um procedimento na ala de cirurgias do hospital da NYU.
Foi tal a preparacao que mais parecia que ia para uma coisa MESMO a sério, tipo um transplante cardíaco. Tive que me despojar de todos os meus bens materiais até ficar como vim ao mundo… bem, com uns pelitos e umas curvas a mais mas, basicamente, a mesma coisa. De seguida vesti um bata e um robe previamente aquecidos, recebi uma bracelete de identificacao com o meu nome, data de nascimento, idade, sexo e medico. Após terminar a toilette com uma touca e sapatinhos azuis, deitaram-me numa cama que, a partir dali, possou a ser o meu modo de deslocacao. Sem qualquer esforco, a ser empurrada por diferentes enfermeiras, todas muito simpáticas, lá andei eu a cirandar por corredores e elevadores até chegar ao meu destino.

Lá esperava-me uma equipa que, sem excepcao, foi toda muito simpática. A enfermeira, para além de confirmar todos os dados e fazer todas as perguntas necessárias, era responsável também por manter a atmosfera leve e divertida. Ainda mandei umas risadas ‘a custa dela. O anestesista, russo, esse era um bonacheirao. Um farto bigode, um sorriso largo e uns olhinhos azuis muito expressivos. Explicou-me tudo tim-tim por tim-tim, lá assinei o termo de responsabilidade e, venha a médica. Esta, Indiana, também me elucidou sobre todo o procedimento, sempre com um sorriso no rosto e no fim lá assinei eu outros papéis. Senti-me verdadeiramente importante… “E’ só autografos!”

Enquanto esperava observei a ala onde me encontrava. Após uns segundos de observacao verifiquei que havia todos os indícios para que a coisas corressem ‘as mil maravilhas. Tudo me lembrava daqueles que gosto e que me querem bem: ‘a minha frente, um quadro de David Hockney, autor do quadro preferido do meu melhor amigo Patrick. Numa estante ao lado, uma caneta publicitava um medicamento que o meu pai toma diariamente e que, por isso mesmo, se tornou muito familiar para mim. O bigode farto e a boa disposicao do anestesista também me lembraram dele.
Toda a ala estava pintada de matizes lilazes e roxos, cores da NYU e também a côr preferida do Joao. A enfermeira, uma fonte de optimismo e attitude positiva. Parecia mesmo a minha mae.
Ora que mais podia eu pedir se nao as energias positivas de todas estas pessoas?

Entrada na sala de cirurgias notei que a temperatura era algo fria. “Porquê?”. Para manter desenvolvimentos bacterianos longe da área. Lá aprendi uma coisita!
Colaram-me diversos sensores no peito e bracos, nao me fosse dar o badagaio sem que eles dessem conta. No braco já tinha sido inserida a injeccao para o sedativo intra-venoso. ‘A volta do braco o medidor da tensao cardíaca e, no dedo indicador direito, outro sensor. Na cara, uma máscara de oxigénio. ‘A minha volta, pessoal de bata, toucas azuis e olhares bondosos.

“So now I am going to give you a milkshake, see? You’re going to feel like when you drink!”
O anestesista mostrava-me uma seringa com um líquido opaco e esbranquicado.
“Well, I don’t actually drink but I am willing to try it if it is a Russian speciality. Does it have Vodka?”
O pessoal riu-se.
“Yes, Vodka, Avocat………..”

Já nao ouvi mais nada. Adormeci e acordei. Já está.

Claro está que estas sao daquelas coisas que se querem sempre evitar mas, confesso que achei a experiência gira.

Parecia um filme… NY tem sido um filme!

 

14 de Setembro de 2000

Faz hoje 4 anos que o meu avô morreu numa sala de hospital, após doenca que, para mim, pareceu interminável.
Nao lhe chamaria doenca prolongada mas sim doenca que se prolongou quando deveria atingir um fim.

Sofreu muito... sofremos muito.
Sofremos pela dor dele, pela nossa dor, pela injustica. Ninguém merece morrer assim, lenta e dolorosamente.

Todos os dias revejo o seu sorriso amplo, sinto o afago das maos sábias.
Sinto o cheiro único, cheiro "a avô" ...
Consigo ouvir perfeitamente o típico "Oh Nênê!" com que carinhosamente me saudava.

Tenho muitas saudades dele. Nao o esqueco nunca... e hoje recordei-o convosco.

A ti "Vô"!

 

NY: Madrasta mas tambem Generosa

Uma destas manhas acordei infinitamente triste.

Sem razao aparente, senti uma angustia tremenda que, há medida que o dia decorria, tendia em aumentar e pesar cada vez mais. Senti que a qualquer momento tudo podia desabar, pois a mais insignificante das palavras trazia de imediato as lágrimas aos meus olhos que, continuamente, continha com esforco.

Nao é frequente ficar neste estado de alma... nao tao intensamente e, especialmente, sem uma razao específica! Mas, sei que quando tal acontece, só preciso de estar só, comigo, mim e eu mesma e canalizar as minhas emocoes atraves daquilo com que emcionalmente mais me identifico: Agua ou Música.

Sabia que nesse dia haveria um concerto no Avery Fischer Hall onde o Requiem de Mozart (uma das minhas composicoes preferidas) seria interpretado juntamente com uma orquestra Indiana, criando sem dúvida uma fusao interessante. Ideal, pensei, é mesmo isto!
Telefonei, confirmei que havia bilhetes para estudantes e, perante isto, saí do lab a meio da tarde. E' incrível a quantidade de vida que se perde quando se passa o dia confinado entre quatro paredes, perdido em microscópios e tubos de ensaio. Lá fora o Sol brilhava. Nao estava nem demasiado quente nem demasiado frio. Ideal.

Embora ainda fosse uma hora de caminho a pé, decidi fazê-lo para, gradualmente, encontrar alguma calma e tranquilidade.
Chegada 'a sala de concertos já sentia alguma positivismo surgir em mim 'a medida que me dirigia 'a bilheteira e preparava para comprar o bilhete para aquele concerto. Nao aquele concerto mas sim AQUELE concerto. Aquele onde me poderia libertar de tamanho lastro que carregava desde a manha. Quem me conhece sabe o que quero dizer...

"Já nao ha bilhetes!"
Senti confusao, experienciei uma desilusao elíptica. "Quê? Como? Mas..."
"Já nao há bilhetes!"

Foi sem dúvida demais. Sem me aperceber as lágrimas escorreram-me pela cara abaixo enquanto ainda enfrentava incrédula o vidro da bilheteira e a cara inexpressiva da funcionária. Julgou por certo que eu era doida... e se calhar estaria a tirar a cnclusao mais acertada de quem vê uma cena assim. Mas ela nao sabia que AQUELE concerto era a minha tábua de salvacao. Nao se apercebeu do quao castrante aquela frase foi para mim. Continuou inexpressiva... eu saí, sem saber para onde.

Diambulei... andei... andei... chorei, chorei, chorei!
Porque? Como? Nao sei... só sentia que tinha que chorar. A cidade era agressiva! Os gigantes que se erguem até ao céu, o sol nos vidros, os táxis amarelos, barulhentos, fedorentos, as pessoas que se acotovelam e empurram nos passeios, os "Sorry" que sao ditos sem honestidade, que se perdem no barulho, na confusao. Asfixiava!

Enquanto demabulava perdida neste caos, procurando nao sei o quê, eis que encontro a resposta.
Uma porta de Igreja.
Nao me lembro da última vez que entrei numa igreja com o propósito de me encontrar, de me refugiar e fugir do exterior....
Entrei. Sentei-me e perdi a nocao do tempo. Fiquei ali, várias vezes a chorar, muitas outras só... a estar, a pensar, a sentir, a conversar... com o quê ou com quem? Nao é definido... Já nem rezar sei, nem tentei... e nao sei definir qual a minha crenca.
Sei que me fez bem.

O silêncio permitiu-me ouvir o passado que, 'a forca da vida que se leva, fica sempre para segundo plano, ofuscado no ruído das preocupacoes, das responsabilidades, dos prazos para cumprir... e por vezes ofuscado para nos proteger do sentido de perda... mas esta só física porque, ao ouvir o passado, falei com os que já cá nao estao e, mais uma vez, percebi que, embora custe nao os ter cá, estao sempre comigo. Ajudaram-me. O tempo que ali passei nao existiu, nao foi mensurável... entrei de dia e saí de noite, só isso posso dizer acerca do tempo que passei naquela igreja.

Julguei sentir-me mais leve e entao decidi sair.

A cidade agrediu-me de novo. NY tanto pode ter de bom como de mau.

Naquele momento, coisas que normalmente me entusiasmam foram exponencialmente convertidas no seu lado escuro.
O choro de novo. Afinal ainda nao me tinha libertado do lastro.
Caminhei, continuei a deambular, mais uma vez em busca de algo indefinido... mais uma vez a resposta apareceu.
Um saxofone soou, sobrepondo-se 'a azáfama de um fim de dia na 5a Avenida. Em frente 'a Biblioteca Municipal um negro dancava e dialogava com o saxofone, gerando uma via colorida por onde quer que aquele som atravessa-se o cinzento da cidade.
Segui-o... atravessei a Avenida vidrada naquela figura. Distraidamente tirei um dolar da carteira, que coloquei no chapeu debitado no chao e sentei-me no passeio...
Fiquei ali, a escutar... finalmente, música!

No fim da cancao que de momento estava a ser interpretada o saxofonista presenteou-me com um sorriso franco e agradeceu-me.
"What would you like to hear?"
Senti os olhos brilharem-me, as lágrimas assomarem e um nó formar-se na garganta.
"Something nice! I'm feeling sad!"
Percebi compreensao no seu olhar.... palavras so atrapalhariam. Nao houve perguntas.
"So I'll play something nice for you!"
Fiquei ali, a apreciar o presente que a cidade me deu, que aquele músico me deu. Eu, NY, o músico, a noite, Miles Davis, Thelonious Monk... e um concerto só para mim.

Fiquei mais leve.

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